quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Aconteceu na minha rua




Manuel, 42 anos.
Chefe da estação dos correios, para onde entrou aos 19 anos como carteiro, conquistando a pulso uma carreira até chegar à chefia da estação.
Casou cedo com a sua namoradinha de sempre e vizinha – a Clarinha, que beneficiando do potencial profissional do seu Nelo, sempre se deixou ficar por casa entregando-se à labuta das tarefas doméstica e à criação dos 3 filhos do casal.
Fruto de uma apurada engenharia económica e esticando mensalmente um ordenado, conseguiram passar do inicial quarto, onde moravam na casa dos pais dele, para a compra de uma terreno ao lado e depois para a moradia com jardim, que habitam hoje. Têm dois carros - um jipe para a família e um utilitário pequeno, para as voltinhas da Clarinha.
À medida que foram melhorando o seu nível de vida, crescia também a inveja dos que vivem por perto, criticando aquela família que só por ter nascido humilde deveria manter-se humilde, entregue para sempre à miserabilidade. Há pessoas que não suportam a harmonia, a felicidade e o sucesso dos outros. Vá-se lá saber porquê… porque não ter uma atitude inteligente e tentar imitar quem faz bem de forma a evoluir para uma situação semelhante…nã…é mais fácil entregar-se à crítica do que ao trabalho…ah pois é.
Numa noite húmida de Inverno, onde o nevoeiro que sobe a rua vindo do mar, invade pegajosamente os muros das casas, deixando a rua mais parecer um espectáculo do Copperfield com aquele fumo no palco que esconde os pés, numa noite dessas, vinha Manuel tardiamente como era seu hábito, descendo a rua no seu jipe abandonado a uma velocidade estonteante com sabor a ponto morto, confiante no domínio do traçado esburacado da rua que o viu crescer, quando sentiu uma pancada forte na parte de baixo do carro. Encostou. Estava já junto à sua casa. Saiu do carro, curioso por ver “qual seria o cão que teria atropelado”- pensou. O nevoeiro era tanto que ele apalpava o chão com as solas das botas. Chegou junto do corpo. Viu uma mancha de sangue a escorrer. Chegou junto do corpo que estava imóvel e todo enroscado. Pareceu-lhe uma criança! Aflito apressou-se a desenroscá-lo. Cuidadosamente. Entretanto vizinhos alertados pela pancada começaram a aparecer na rua. Manuel não ouvia nada. Acha mesmo que deixou de ouvir, por instantes. Só via. O rosto ensaguentado que jazia nos seus braços era de Tico.
Tico era um desgraçado toxicodependente que atormentou a rua no Verão passado com assaltos a todas as casas. Foi preso meia dúzia de dias e posto em liberdade porque segundo consta nas vozes do povo – não há lugar nas prisões para todos. Nunca mais ali teria voltado até hoje. Provavelmente no calor de uma ressaca sem fim e na tentativa de uma casa incauta, estaria a deambular por ali, naquela noite de terror.
Tico não resistiu à pancada e morreu ali mesmo. A autópsia revelaria que estava inundado numa dose maciça de cocaína.
Manuel foi preso, acusado de homicídio, julgado e condenado.
Vai cumprir 10 anos por ter sido provado que “naquela noite de Fevereiro viria, como sempre, negligentemente a fazer corridas numa atitude prepotente do alto do seu jipe, tendo inclusivamente, feito pontaria ao homem que, coitado, cambaleava tiritando de frio pela noite”- foram as vozes da inveja que o viram e testemunharam. Mesmo com o manto do nevoeiro a cobrir as suas casas.
Agora sim fez-se justiça: a vida fez voltar ao seu meio de humildade quem nunca de lá devia ter saído. Ah… É a vida…dizem aliviadas as vozes da inveja.

O juiz deu como provado o “crime” e acrescentou que “o valor da vida humana é sagrado”.
Vá-se lá saber a que vida estaria a referir-se.
A estação ficou sem chefe.
Clarinha sem marido e os meninos sem pai.
Nós, o sistema, perdemos o Tico.

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